«Recebe-nos no seu gabinete, na Faculdade de Letras. Uma sala pequena, envelhecida, com muitos livros, muitos papéis - talvez por isso um espaço tão acolhedor. O cabelo que lhe emoldura o rosto está impecavelmente penteado. A blusa de linho, branca, bordada, acentua-lhe o ar distinto, o porte de gestos delicados.
(...)
Com tantas andanças pelo mundo, como é que o mundo vê a literatura portuguesa?
Com muito interesse, muita curiosidade! É pena que não haja mais e melhores traduções.
Era algo em que se devia investir a sério. Paulo Quintela era um grande tradutor, traduzia do Alemão, do Inglês e de outras línguas, mas sobretudo dessas. Traduzia excelentemente e dedicou toda a sua vida a essa tarefa, por vezes tendo sido criticado por isso. Diziam por aí que ele não tinha uma obra científica porque não escrevia livros, fazia apenas traduções e depois escrevia pequenas introduções para as traduções. Eu acho que ele fez um trabalho notável, pelo qual tenho um enorme respeito e admiração. Traduzir é muito difícil. Eu também já traduzi, ainda traduzo, e sei que é muito difícil. O interesse pela literatura portuguesa no estrangeiro é muito grande. E desde que o Saramago ganhou o Nobel, mais ainda.
E a nível da poesia, como estamos?
A poesia sempre foi algo que, de alguma forma, nos corre nas veias. Várias pessoas fizeram comentários sobre o facto de sermos um país de poetas. Acho que estamos bem representados. A Graça Capinha está a dirigir um projecto no Centro de Estudos Sociais (CES) - onde ambas somos investigadoras - sobre poesia. Ela chama-lhe Poéticas de Resistência. Esse projecto obriga-a a ir pelo país ver o que é que se publica que nunca chega ao Expresso nem ao Público. E ela diz que se faz imensa coisa muitíssimo boa que não chega aos meios de comunicação.
Há toda uma obra que fica completamente ignorada. Não tenho dúvidas: a literatura portuguesa está mesmo muito bem e recomenda-se.
Quem são os seus autores preferidos?
O Saramago é um deles. A Lídia Jorge também. Maria Velho da Costa. Ana Luísa Amaral.
Gosto muito do António Ramos Rosa e escrevi muito sobre ele. Mas o poeta vivo que mais admiro é o Alberto Pimenta. Muitas pessoas nem sequer ouviram falar dele. Ninguém fala muito nele porque ele é muito rebarbativo, mas é um grande poeta, que percebe que não se pode fazer igual ao que já foi feito. Depois há outros... A Fiama. Sophia, Eugénio de Andrade. O Herberto Hélder é outro grande poeta. Mas quando estes poetas começaram a publicar a sua “obra toda” ou “obra completa” o Alberto Pimenta publica um livro que intitula “Obra Quase Incompleta”! E essa obra é notável porque ele é capaz de publicar um poema a que, passados uns anos, caiem letras e fica com outro aspecto. É quase explicitamente uma reflexão sobre o problema da língua. Porque a língua é que é complicada. A língua fala-nos, não somos nós que falamos a língua. Eu tenho consciência de que a língua me está a falar neste momento, não sou eu que a falo.
O poeta é um fingidor?
Dizia o Pessoa, sim. No sentido do fingir, do fazer-de-conta da ficção - porque ficção e fingir são palavras cognatas – é verdade. Mas também temos de rever a questão da autenticidade.
O que Fernando Pessoa põe nesse poema é a questão da autenticidade: O fingimento é que é a verdadeira autenticidade. É o que diz verdadeiramente o mundo. Porque essa poesia de subjectividade de dizer o “eu” não é o mais importante. Aliás, Nietzsche dizia exactamente a mesma coisa: o que interessa é dizer o mundo, não o “eu”.
O poético também é político?
Sem dúvida. Tudo é. E mesmo aquele poeta que se diz apolítico tem a política do apoliticismo. Não há como escapar à nossa condição de seres políticos.
Mas a escrita foi uma arma de Abril.
Sem dúvida. Mas aquela que conseguiu contornar a censura, não aquela que ficou na gaveta.
Olhando para o Portugal de hoje acha que temos o país pelo qual Abril lutou?
Não, não acho.
O que é falta?
Falta mais justiça social. Falta... Eu até diria democracia. E há corrupção a mais. O 25 de Abril trouxe a democracia, sem dúvida; prometeu maior justiça social; e conseguiu algumas coisas, não vou dizer que não. Claro que sim. Agora, aquilo que muitos de nós pensávamos que ia ser o Portugal depois de Abril não se concretizou, pelo menos não na sua plenitude.
As mulheres ainda precisam que lutem por elas?
Elas é que precisam de lutar por elas. E cada vez mais creio que as mulheres estão a assumir essa luta de se afirmarem, de serem reconhecidas, de avançarem para posições de poder.
As mulheres ainda têm muitos e bons motivos para lutar. É preciso entendermos a nossa sociedade, a nossa cultura, as teorias pelas quais nos regemos. (...) É preciso continuar a lutar pelos direitos das mulheres, tal como é preciso continuar a lutar pelos direitos dos negros e das minorias. Em qualquer parte do mundo. Porque ainda há muito racismo e discriminação, por todo o lado.
As mulheres escrevem de forma diferente dos homens?
Já escrevi sobre isso. Desde que há consciência da escrita e do corpo que há produção escrita por mulheres que deliberadamente assumem que escrevem de forma diferente. Eu acho que não, acho que a arte e a literatura não são coisas naturais. Não há nada mais artificial que a poesia, nada mais artificial que a literatura, e portanto não é natural que se notem diferenças de uma escrita para a outra. A Irene Lisboa, uma grande poeta do modernismo português, dizia que distinguir a arte masculina da arte feminina é muito difícil. E é.
(...)
Para que é que serve a literatura e a poesia?
Para nada. (Silêncio) Para aprendermos a interrogar. Mas a poesia não diz nada. A poesia diz-se, não diz coisas. Diz-se. O mais importante da poesia e da arte em geral é, justamente, a gratuitidade. O gratuito é que faz de nós humanos. Aquilo que não é contabilizável, que não é objecto de imposto. Como diz o Álvaro de Campos: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?” [não me lembro agora bem do resto, mas a ideia é esta] queriam-me um homem normal? Não! Eu sou poeta!”. Mas os poetas são pessoas como as outras (sorriso).
São? Há aquela ideia de que são pessoas especiais...
Não. Isso é um conceito romântico e elitista que se mantém. É a ideia do génio. Mas porquê os poetas? Em qualquer outra área de actividade encontramos seres excepcionais. Não quer dizer que não existam poetas excepcionais. Mas a maior parte deles não o é. Como em tudo.
(...)
É uma mulher realizada?
Sempre a realizar. Sempre em realização.
O que é que ainda lhe falta fazer?
Morrer. Mas lá chegará (sorriso)...
(...)
É difícil vingar fora de Lisboa?
Só porque os jornais não nos ligam muito. O colóquio de estudos americanos que nós tivemos aqui intitulado “America where?”, um colóquio internacional, com especialistas americanos muitos bons, de topo; ex-presidentes da ASA – uma delas acaba de ser eleita presidente da associação. Da Irlanda, da Holanda, de Espanha, Inglaterra, Alemanha. Um naipe de especialistas dos melhores que há. Quem não veio, vergonhosamente, foram os nossos colegas americanistas de Lisboa e do Porto. Mas quem é que falou do colóquio? Por acaso, o António Guerreiro publicou o programa na Actual. Depois telefonou-me a dizer que não podia vir cobrir o colóquio porque o jornal não lhe dava espaço nenhum para este tema. Se fosse em Lisboa, se calhar as coisas seriam diferentes.
A poesia tem um papel social?
Claro. Aliás, tudo é social. Precisamente porque não tem de estar investida em interesses, a poesia tem uma função social importantíssima.
Num mundo que, como diz, “se desmorona”, mais do que mentir a poesia deve falar a verdade?
(Silêncio) A verdadeira poesia – e o meu mestre Bloom dizia “strong”, ou seja, “forte” – a grande poesia, “forte”, não mente. Nunca mente. Finge, mas não mente. São coisas diferentes.
Se quando fala em verdade me fala de poesia-panfleto, isso não! Poesia não é panfleto.
Se é, deixa de ser poesia. Agora, a poesia tem muitas maneiras de dizer as coisas. O Robert Duncan, que era ferozmente contra a Guerra do Vietnam, escreveu vários poemas em que se posicionava contra a guerra, mas fê-lo de forma a que a verdade dele estivesse lá sem cair no panfletário.
Prefere poesia ou literatura?
Fernando Pessoa e Sá Carneiro faziam essa distinção e diziam que só os lepidópteros apreciavam a literatura, os outros preferiam poesia. A poesia é a arte suprema da linguagem. E, nesse sentido, acho que prefiro a poesia – sem a distinguir da literatura, nem da ficção, nem do drama.
A poesia é esquecimento ou memória?
As duas coisas. Há um poema de Hart Crane, outro dos meus poetas preferidos, que diz “I can remember much forgetfulness”. É muito bonito. Nós agora temos um projecto no CES, que esperamos que venha a ser aprovado, sobre o silêncio e os silenciamentos. A minha parte vai ser justamente sobre a poesia e os silêncios e os silenciamentos da poesia. E os esquecimentos, porque o esquecimento também é um silêncio.
O belo ou o feio?
As duas coisas. Aliás, uma não existe sem a outra. É o chamado sublime.
Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos?
Fernando Pessoa.
Qual é a sua palavra preferida?
A minha palavra preferida? (Silêncio) Que linda pergunta! É “poesia”.
Diga-me o título de um livro que a fez feliz e de um livro que a fez chorar.
Há um livro que ainda está muito presente em mim. É um belíssimo romance. “Myra”, de Maria Velho da Costa. Fez-me chorar e também me fez feliz porque é uma bela obra.
A Língua Portuguesa é a Língua mais bonita do mundo?
Não.
Qual é?
Não sei... »
mais aqui: http://www.uc.pt/rualarga/anteriores/26/26_17
* Maria Irene Ramalho é licenciada pela Universidade de Coimbra e doutorada pela Universidade de Yale. É professora de Estudos Ingleses e Americanos da Universidade de Coimbra e International Affiliate do Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi, em 2008, galardoada nos Estados Unidos com o Prémio Mary C. Turpie atribuído pela mais importante associação de estudos americanos (American Studies Association), que pela primeira vez é atribuído a alguém de fora do país.
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