24 de maio de 2011

O Doido e a Morte

«GOVERNADOR CIVIL - Perdão, Sr. Milhões. É preciso que atenda a várias circunstâncias pessoais. Eu não estou preparado para morrer. Não se morre assim sem mais nem menos. Morrer! Morrer!. . . Então o senhor pensa que isto de morrer é uma coisa sem importância nenhuma? Morrer é uma coisa muito séria, é um acto que importa certa preparação, testamento, cólicas, etc. É só chegar aqui, morrer e mais nada! Que tal está o da rabeca! Morrer! Eu não quero morrer nem pensei nunca a sério que tivesse de morrer. Tenho ido a enterros, mas é aos dos outros. . . Então o senhor entra-me pela porta dentro, e sem mais nem ontem, de repente, fala-me assim de morrer como se eu fosse um condenado à morte, nas escadas da força? Adeus, meu amigo! Além disso, é um crime. Previno-o de que é um crime, punido por todos os códigos, atentar contra a vida duma autoridade constituída, demais a mais no exercício das suas funções. Artigo 343. o do Código Penal. Vamos, vamos. . . Isso é um momento de desvario e mais nada. Espero que as minhas palavras o façam reconsiderar. (O outro ergue-se implacável e aproxima a mão da campainha.) Ai que ele está doido varrido! (Exaltando-se) Senhor! Senhor! (Avança para o agarrar, mas o outro põe o dedo em cima do botão e ele afasta-se logo.)
(...)
SR. MILHÕES - Doido! Doido!. . . Já é com esta a terceira vez que mo chama. Saiba então que um homem que não tem aos menos uma parcela de loucura não presta para nada. Aqui estou eu, que, enquanto tive o meu juízo todo, nunca fui feliz. (O Governador Civil julgando-o descuidado, vai-se aproximando da porta.) Passar por doido tem muitas vantagens. Direi mesmo que é a única situação vantajosa que há neste país. O doido diz tudo quanto lhe passa pela cabeça. (E continuando a falar imperturbável faz-lhe sinal que volte para trás e aproxima o dedo da campainha.) Ninguém estranha. O doido pode andar de chinelos de ourelo pelo Chiado. Ninguém repara. Quem tem juízo vive constrangido e está sujeito a mil complicações. Vá, sente-se.»

Editado em 1923. O Doido e a Morte, elogiado por José Régio e Miguel Torga é, porventura, a melhor obra de Raul Brandão e reveste-se de enorme relevo no panorama teatral português. A acção de "O Doido e a Morte" desenvolve-se num contexto marcado pela degradação da vida social e política da República. Em cena, entre outras personagens, dois indivíduos que o autor transformou em arqui-rivais: um governador civil e um milionário alegadamente enlouquecido. Perante a morte iminente estas personagens, "abrem o livro" e fazem uma breve resenha do que é que vale a pena recordar na esterelidade que assola duas vidas inúteis...

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